quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

Caosbismo



Agora era todas as coisas
As casas ao sol e a sombra alisando a montanha

A ladeira e o desejo de rolar nu sobre ela
Todas as moças a varrer em uníssomo
7 quarteirões seguidos

A música recatada em um bilhão de fones

O rosto triste e a risada estrelada
na multidão ornada de vazio
A fumaça do incenso viajando desenbestada
em seu rastro fugaz de perfume

Sou a moto veloz circundando a ribanceira
e a menina negra a caminhar em seus chinelos
serenamente a mascar gomos de mexerica

A floresta lendária que já existiu
e o velho repensando a vida,
mil anos após minha morte

Uma piada contada por um alienígena anos-luz daqui
e a risada inaudita impensável

O enigma do hexágono de saturno
As bolhas de ar congeladas
nas águas profundas
de Europa
Os vulcões transbordando em Io
A superfície de metano gelatinoso em Titã

Coxas, cabelos, dentes, hálitos
O descascar e o revestir dos tecidos
O grito do orgasmo, o tesão frustrado
A criança nascendo e o cão dormindo
na quentura do asfalto

A sensação dos dedos a folhear páginas,
clicar mouses, apertar gatilhos, digitar teclas
espremer espinhas, apontar caminhos

Uma espécie de peixe que sabe contar até 4
Um macaco vencendo um homem num jogo
Um junkie aloprado suando sem parar

Os papiros queimados em Alexandria
antes do fogo os queimar

Sou o desdito, o desfeito
O silêncio antes da idéia
A ausência da linguagem

Era agora a anti-coisa inacabando





quarta-feira, 13 de fevereiro de 2008

O Blog e a Escrita Pré-apocalíptica



O que eu preciso para voltar a escrever? Quem sabe se eu voltasse a fumar, pensei. Tentei um charutinho de 70 centavos cuja marca tem nome de mulher. Acendi e olhei para o alto, praquelas nuvens sempre tão exclusivas no céu desta aerada manhã. Senti como se voltasse a respirar. Não, já não falo do tabaco. Falo de quando comecei a escrever isso aqui. É como se tivesse chegado de viagem de um lugar distante onde as leis fossem incomuns. Retorno a um apartamento abafado, com cheiro de falta de sol. Abro portas e janelas. O vento luminoso vai se espalhando por toda parte, ocupando cada brecha entre as brechas da matéria, este aquário onde nadamos ou nos deixamos boiar.


Cada divagação vai trazendo cor á minha pele. Começo a olhar para os móveis, para minhas coisas, estas palavras, o som dos meus dedos no teclado, o gosto do tabaco e do café de horas atrás com o qual brindo á goladas este renascimento. Agarro-me a tudo isso, com medo de ser despejado. Não quero voltar ao nada. Prefiro este tudo, onde esses textos vivem o meu viver e a troca ocorre, sem cerimônias.


Vejo então com a clareza do azul entre aquelas nuvens que não há muita escapatória para ideais infinitos. Os antigos tempos onde havia tão alta literatura, música, filosofia, eram tempos cruéis. Infelizmente esse era o preço.


É muito fácil filosofar quando se vive cercado por meia dúzia de escravos. Não precisaríamos pensar em mais nada que não na idéia, seja ela qual fosse. Poderia escavar cada vez mais fundo até furar e chegar no outro lado de um conceito. Mas este não é o mundo antigo, graças aos Deuses. Não temos mais escravos, apenas empregos e empregados. Muito trabalho, informação e correria. O mundo é menos cruel, temos mais leitores, mais consumidores de tudo. Sacrificamos homens livres para fabricar artistas e pensadores no passado. Hoje sacrificamos artistas e pensadores para produzir leitores livres e compulsivos consumidores.


No início reagi ao ônus disso tudo simplesmente assumindo, com muito pesar, a morte da literatura. Já superei o processo do luto e penso no que fazer a partir de agora. Conversei com Rimbauld e Borges, ambos riram de mim, riram daquela esperança lá no fundinho, que eu ingenuamente sempre tive, de que a literatura iria retornar como um tipo de messias ressuscitado. Depois falei com Marx e até com Asimov sobre a possibilidade de hordas de robôs serem fabricadas a fim de substituir os escravos dos velhos tempos, de modo que voltássemos à era das obras grandiosas sem que para isso pessoas fossem sacrificadas.



Sei que não sou o primeiro nem o único a pensar nessa possibilidade, mas com o capitalismo em pleno desenvolvimento isso se mostra tão distante quanto as deliciosas utopias anarquistas com as quais já muito me masturbei (e ás vezes ainda me masturbo) em noites enluaradas. Na boca fica um gosto de vinho e gasolina só de pensar.


Marx chora enquanto refaz seus cálculos. Asimov me sacode os ombros, estapeia minha face, exigindo mais foco quanto à questão dos robôs escravos. Desculpa, Isaac, mas não vai dar. Mesmo que a idéia progredisse nas próximas décadas, existem agora problemas ecológicos de proporção apocalíptica que certamente exigirão mais atenção da humanidade durante o período de minha curta vida. Como não estou certo quanto à possibilidade de reencarnação ou vida após a morte não pretendo investir em algo de cujos frutos não poderei arrancar nem sequer uma saborosa mordida. Vai que antes mesmo disso ocorrer um meteoro nos destrua a cultura inteirinha de uma só vez?


Sim, não é nada fácil viver num mundo de correria, cybercapitalismo e problemas apocalípticos. Isso nos torna estressados, o tempo todo com uma sensação de que não vai dar tempo. Não vai dar tempo do que? De deixar um legado? No meu caso talvez a neurose seja essa. O único livro que escrevi foi em tiragem limitada para amigos, pelo fato de meu senso crítico ficar o tempo todo me dizendo pra não alimentar o lixo cultural que tem circulado. Não, nunca escrevi nada de grandioso. Já disse, não quero ter escravos e os robôs não são viáveis agora. Tenho filho para sustentar e preciso portanto mergulhar neste admirável mundo veloz, tão avesso à profundidade.


Não há tempo. Meteoros, uma era glacial antecipada, uma guerra mundial repentina decorrente do retorno da guerra fria, um acidente nuclear, uma epidemia. Tudo isso contribui pra que eu procure dividir o que sinto com outros seres humanos, agora já não mais antes de meu próprio fim, mas da humanidade, como espécie e como cultura.




Então escrevo para mim e passo para os amigos quando o impulso é verdadeiro. Tudo por medo de não ter tempo de registrar textos, mandar pra editoras, conseguir contatos em alguma revista ou jornal etc. Mas e quanto ao blog? Lembrei dele agora. Antes que coisas terríveis aconteçam, vou publicar aqui mesmo, neste blog, livre de ter que prestar contas a editores, ou a um público alvo. Agora somos só nós. Eu, o texto e o leitor invisível ou imaginário (a essa altura foda-se, não é mesmo?).


A literatura está mesmo morta. Em tempos de correria, que venham os textos corridos ao menos, lidos na tela brilhante e incômoda. Do jeito que der pra fazer. Meu registro fica aqui, até o primeiro colapso virtual e toda a Internet tiver que ser refeita, ou até que a humanidade se encerre como um computador sendo formatado e as lulas gigantes assumam o posto de raça inteligente a dominar a Terra. Ou quem sabe aqueles robôs?