segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Taticas de sobrevivência para reinar sobre o caos reinante - parte 3



“O real da vida se dá, nem no princípio e nem no final. Ele se dispõe para a gente é no meio da travessia.”


João Guimarães Rosa


O Caldeirão é um dos principais objetos dos cultos dos antigos pagãos por ser considerado o útero divino da Grande Mãe, onde ocorria a gestação de seus encantamentos, sendo também um importante símbolo de fertilidade. Diz a lenda que os famosos bardos celtas, para serem iniciados, deveriam sair em uma perigosa busca pelo Caldeirão de Cerridwen e só mesmo tomando um pouco de seu conteúdo estariam aptos. Alguns acreditam ser esta uma das lendas que poderiam ter originado a busca pelo Graal.


Escrever é um tipo de caçada pelo sagrada caldeirão. Ficamos o tempo todo á espreita, de caneta em punho, papéis de fácil acesso e livros espalhados ao redor, como armadilhas. Ter essa disposição nos dias de hoje é artigo de uma raridade tamanha, que há quem não acredite nem vendo com os próprios olhos. É um contexto difícil mesmo. Para desanimar, melhor jogar tintas coloridas sobre a jaula da realidade, quem sabe dar um tom de lenda à coisa toda, pra ver se mudando nossa forma de encarar os fatos, muda também nossa postura e consequentemente aquilo que produzimos, abrindo bolsos de ar para que respire a criatividade, ao menos por alguns instantes.


Sem tempo para nada, pessoas honestas e trabalhadoras não podem dispor de oficinas da alma. É quase questão de sobrevivência optar pela alegria vazia que se contrapõe à densidades maiores, das que ousam tristezas. Por isso ninguém quer ver filmes pra pensar, ler pra pensar, viver pra pensar. Não-pensar tornou-se um tipo de bandeira, um “hábito saudável” que diferencia os normais dos estranhos, algo que se pode comprovar com um breve passar de olhos pelas estatísticas do IBGE ou pelas conversas das pessoas nas esquinas do cotidiano . Essa normalidade nos é martelada pela mídia, nos mesmos moldes da hipnose clássica, por meio de repetições e palavras gatilho. Isso, mais as atitudes que advém disso ou simplesmente acompanham tal tendência, acabam por fixar na cultura, com ainda mais ênfase, a mentalidade do: trabalhe, compre, morra.


Crescemos cerceados por tais regras e ao as apoiarmos, nos tornamos cúmplices da banalidade em que damos forma nossas vidas. Enfrentar isso só é possível por aquilo que chamo de “trilha do sublime”, ou seja, optar não mais tanto pelo que for mais fácil, mastigável, óbvio, comum, divertido e simplório, coisas que nosso mundo tem de sobra, mas, a partir de agora, dar prioridade ao desafiador, ao poético, ao esquisito, ao complexo, sem mais nos limitarmos pelo rótulo da diversão, pois o inverso do não-pensar é o sublimar. Sem sublimar não se vê nada além de paredes brancas e preguiça sem cor.


Nos tempos antigos, acredito que o bardo buscava incessantemente por isso, pela inspiração contida no mágico caldeirão. Tinham tão pouco tempo como nós agora, mas não por viverem num mundo de correria e múltiplas atividades e compromissos, mas por ser baixíssima a média de vida naquela era. Hoje, com a média de vida alta, são poucos os que encontram alguma pista ou sequer se esforçam em continuar a busca. Simplesmente não sobra tempo, e não nos abrimos o suficiente para novas perspect ivas, de modo que perdemos o caldeirão mesmo quando nos encontramos a cozinhar dentro dele.


A mídia não daria seu aval ante a possibilidade sublimar, pois o comércio não apoiaria um público pensante (e consequentemente menos consumista), logo o senso comum (que se apóia na mídia e a alimenta) também não sería favorável a esse tipo de salto paradigmático. Some-se a isso a falta de tempo e o cansaço nascidos da necessidade de se ter empregos, e então se obtém essa impossibilidade de mudar. Um destino vazio e sem legado. Um planeta de burrices interligadas, numa imensa teia de ausências. Infelizmente tudo o que se pode fazer é mudar a si mesmo, salvar-se do vazio generalizado, aumentando, ainda que de forma indireta, o gueto sublime. Se influenciaremos ou não, isso não vem ao caso, o que importa é esse virutoso egoismo, sem o qual nos curvaríamos ao já consolidado apocalipse do senso comum.


Tal busca é nobre e sobre os que nela investem paira aura de heroismo. Não se trata de missão que dependa da aprovação alheia, mas de tarefa solitária. E que fique claro: Aquele que encontra o caldeirão tem por obrigação escondê-lo novamente em suas obras (não importa de que natureza), deixando-o para trás para, só então, poder continuar a procura-lo em outras partes, atravessando passagens, armadilhas, portais e guardiões, pois importante para o bardo de hoje continua sendo o mesmo que valia para o de ontem:


Vale mais a travessia que o resto.



Um comentário:

Anônimo disse...

Muito bom, é isso mesmo. Tenho cada vez mais pensado que na verdade não falta tempo, sobram distrações. O bardo de antigamente vivia 30, 40 anos, mas precisa se ater ao essencial, comer, dormir, sobreviver antes de poder viver, e ainda assim ia em busca desta coisa fugaz que é a arte. Hoje, nos soterramos sob milhares de distrações, e apesar de termos a sobrevivência quase garantida e uma expectativa de vida muito maior, perdemos nosso contato com o essencial (comemos fast food para termos tempo de comprar o dvd pirata do artista da moda). Acho que nos falta a contemplação, que se foi junto com o tédio, dois lados de uma mesma moeda.