quarta-feira, 17 de março de 2010
Taticas de sobrevivência para reinar sobre o caos reinante - parte 4
"Quando as águas doces e as salgadas estavam juntas, misturadas,
Os juncos não estavam trançados, ou galhos sujavam as águas,
quando os deuses não tinham nome, natureza ou futuro, então a partir de Apsu e Tiamat, nas águas dele e dela, foram criados os deuses, e para dentro das águas precipitou-se a terra"
Enuma Elish - Mito babilônico da criação
Essa coisa do pacto ficcional. Para quem não sabe, funciona assim: Fulano se senta ao lado de Ciclano para assistirem a um filme de terror. Fulano para para comentar o tempo todo sobre o quão o filme é horrível, que aquilo tudo não é capaz de assusta-lo. Já Ciclano mal para piscar de tão absorto nas imagens, no enredo, na trilha sonora. Ambos sabem que se trata de uma mentira que se move estampada na tela. A diferença é que o primeiro não consegue levar a sério, o que faz com que o filme nem chegue perto de diverti-lo, enquanto que o segundo finge o suficiente acreditar naquilo que vê ao ponto de chegar a sentir medo e entreter-se com o que sente. O elemento que permite que alguém adentre o mundo da imaginação é justamente esse pacto, um acordo silencioso entre o leitor e o texto, o telespectador e a tela. Algo que se aplica a todas as formas de mídia.
Mas o que implica tal conhecimento? Para quem, conscientemente ou não, tem alguma noção deste pacto, a leitura de qualquer mídia irá adquirir outros parâmetros, muito mais elaborados, posto que o leitor coloca a imaginação para ajudar as idéias que ele absorve a ganharem forma. Isso permite voôs mentais muito mais longos e precisos. Quem não domina esse conceito de forma alguma, fica aprisionado pelos sentidos e por sua noção de realidade, fincando tão fundo os pés no chão que difícilmente conseguirá uma flutuadinha sequer.
Algumas pessoas optam por propositadamente evitarem o pacto ficcional, outras se especializam nele a tal ponto que mesmo uma história em quadrinhos insignificante poderia transporta-lo para outro planeta. Os primeiros o fazem por acharem perigoso tirar os pés do chão, limitando-se eternamente por uma gravidade a que se impoem, já os entusiastas do pacto muitas vezes se esquecem de pousar quando deveriam. Em ambos os extremos, como provavelmente em todo e qualquer extremo, o equívoco essencial: O esquecimento de que se vive em dois mundos e não em um. Pôr os pés no chão é necessário e também bom, mas saltar para o mundo das idéias não é apenas bom, é também necessário.
Tudo bem que alguns se especializem. Mas nesse caso é melhor que, como irmãos de humanidade que somos, nos ajudemos com isso. Quem conhece o pacto, por favor ensine para quem não conhece, pois deve ser triste viver sem saber ser possível voar para outros mundos. Já quem muito bem conhece as leis do chão, faça um favor de oferecer âncoras para os que tanto temem a bruta beleza da realidade. Dessa forma todos ganham. Então a questão que fica é: Como se ensinar tais conceitos?
Sugiro aos que tem asas, que tragam de longe alguns livros para quem ainda não as desenvolveu suficientemente, pois é na prática, no exercício imaginativo, só assim podem fazê-las crescer. Já quem tem raízes... Não tenho como falar por esses... Só sei que é confortável pousar em seus galhos, saborear a refrescante sombra de sua companhia, compartilhar dessa firmeza que me falta...
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