quinta-feira, 8 de outubro de 2009

O Saco do Louco



“E ao parar ante aquele lugar que outrora fora verdejante e soberbo, agora só restavam arames farpados, câmeras de segurança e restrições explícitas por toda parte. E ao tentar desafiar o caos das ondas do mar que parecia calmo e, próximo a ele, instalar sua barraquinha, com todas as suas coisitas especiais e tudo mais, não teve jeito, o mar veio com tudo, abocanhando sua estabilidade e levando seu abrigo embora. Sorte que deu tempo de colher o que sobrou, algumas coisas pra lá de essenciais, ainda que alguém de fora jamais entendesse o porquê. Afinal, nosso mundo é tão utilitário e a magia (poesia?) tão inútilmente sublime...” Adaptado de um recorrente sonho de minha irmã



Na vida existe uma fase onde buscamos ávidamente o novo. Mesmo que alguns o façam a vida inteira, parece haver um momento onde nada ainda é fixo, as coisas vão caindo e vamos catando, desesperados e delirantes. E tudo parece eterno... Até quando as coisas vão se revelando como elas são. Você pode tentar tapar os olhos ou concentrar-se em outra coisa, mas está lá: ilusório, efêmero, mutável. É impossível nos fixarmos e isso gera neuras sem fim. Para sobreviver, muitos se anestesiam, outros se enterram em trabalho, alguns até enlouquecem ou se matam. Tudo por não conseguir se firmar. Mas há uma alternativa, assim como para a lagarta existe a mariposa.


O Louco sempre foi uma carta fascinante do tarô. Já escrevi um conto sobre ele, refleti um bocado nesses anos todos, já o usei indiscriminadamente em minhas narrativas sob as mais diversas máscaras. E claro, também já usei sua máscara e sei que o poder deste arquétipo é realmente algo de outro mundo. No entanto, em minhas análises, sempre foquei na incrível sorte do louco, algo similar a sorte das crianças e dos bêbados. Nisso e mais o fato de ser uma carta limiar no tarô, isto é, está antes do início de tudo, como um tipo de sopro criador que faz brotar o arquétipo das iniciativas poderosas: O Mago. E mais, vem depois da carta: O Mundo, que é um símbolo de equilíbrio e plenitude sem parâmetros. Por isso o chamo de “carta limiar”, pois trata-se de um arquétipo que se posiciona antes do início e após o fim de tudo.


Na figura do Louco, não importa em qual tarô, sempre haverá alguns elementos chave que não podem ser mudados. Três se destacam: O abismo sobre o qual ele cambaleia, sem jamais cair; o cachorrinho que o segue, muito fiel e o saco que carrega nas costas. Podemos imaginar o que o abismo representa, pois são muitos os perigos que o mundo nos traz e o louco sem muito pensar, vai seguindo despreocupado e, por incrível que pareça, não cai. Mas e enquanto ao cãozinho e o saco?


Vou começar pelo cãozinho. Já notou como eles de fato seguem mendigos, alguns bêbados e gente largada por aí? Embora ignoremos sua importância, ela saltará ante nossos olhos se dermos a esse símbolo sua devida atenção. Os cãezinhos de loucos são fiéis, isso é, não se importam com sua roupa, com o que você diz ou com o que os outros acham. Pode-se dizer que lhes dão amor, pois jamais os abandonam, os protegem durante o sono e servem de batedores durante as andanças. Certamente a presença do cãozinho é fundamental pra que o louco não caia em abismos assim de graça.


Certo, sabemos que o amor do cãozinho é incondicional, mas para garantir a sua compania é preciso algo mais. Trata-se de dividir com ele seu abrigo, seu alimento e sua atenção. Nesse ponto dá pra entender um pouco a importância do saco do louco. Dentro dele estão coisas essenciais, o verdadeiro alimento da alma, isto é, do cãozinho. Enquanto o louco mantiver o seu saco cheio deste alimento encantado, poderá sobreviver e manter o cãozinho ao seu lado, o qual continuará por guia-lo, ama-lo, acalenta-lo e o melhor, ajudando-o a farejar mais do essencial alimento, mantendo assim o ciclo. O louco só perde esse poder ao se esquecer disso, de cuidar de seu cão.


Conosco é a mesma coisa. Dá pra sobreviver ao mar do caos e evitar o abismo de neon se nos firmarmos na essência por detrás das ilusões, tomando o cuidado de guarda-las conosco em nosso “saco” e alimentando com ele nossa alma, o que a fidelizará e a manterá como nossa guardiã. Todos nós temos um cãozinho como este, ainda que o deixemos dormir na chuva ou a milhares de quilômetros de distância, esquecidos e largados. Ainda assim permanecerão fiéis quando com eles nos encontrarmos. Se perdeu o seu, prepare o seu saco e ele reaparecerá. E quando isso acontecer, continue a reabastecer o saco e alimenta-lo, que ele nunca sairá do seu lado e a jornada será certamente segura e inspiradora.


Mas o que colocar em nossos sacos de louco? Pense no que é essencial pra você: livros, filmes, fotos, música, pessoas, idéias, tudo. Mantenha sempre com você, se não físicamente ao menos firme nos pensamentos. Alimente-se disso todos os dias, sem falta. Resumindo: Não se esqueça do seu cãozinho, pois ele jamais se esqueceu de você.


Outra coisa que não poderia deixar de fora deste texto é o ponto onde esses pensamentos começaram a vir á tona. Estava pensando sobre a importância dos bardos para os celtas no mundo antigo e para toda a idade média logo após. Pois então, agora pensemos na importância da arte para um mundo capitalista e cheio de reverência á vazios bonitos de se comprar e pôr na sala de estar. Acredito que hoje os bardos sejam ainda mais importantes do que já foram, mesmo que não sejam reconhecidos. Para os aspirantes a bardos, o saco dos loucos é certamente ainda mais fundamental. A diferença que existe entre o louco e o bardo, no entanto é a mesma que diferencia o primeiro de seu arcano seguinte: o Mago.


O louco é inspirado e iluminado, mas não toma iniciativas importantes para o mundo. Já o mago é a iniciativa personificada, assim como o bardo, com sua arte ambulante. Deste modo, pode-se dizer que enquanto o louco guarda o conteúdo de seu saco para si e seu cão, o bardo faz o mesmo, mas não se esquece de dividir o conteúdo de seu saco e produzir ainda mais alimento para os que o rodeiam. Muitos não verão o que ele distribui, ou jogarão fora com o desdém de quem recebe panfletos de crentes na rua. Mas alguns se alimentarão... Consequência (quando dá certo): O mundo brilhará um pouco mais, com tonalidades novas e únicas, pois mais cãozinhos perdidos serão encontrados enquanto muitas porcarias serão convenientemente perdidas.


O que está esperando? Seja louco ou seja bardo, mas seja! Corra e vá fazer o seu saco!


1, 2, 3, agora!!!




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